J�lio Ferry do Esp�rito Santo Borges
(V�tor Monteiro*)
J�lio Ferry do Esp�rito Santo Borges foi uma das mais
destacadas figuras da engenharia civil portuguesa e, em particular, da
engenharia de estruturas, um dos ramos mais importantes da
especialidade.
Como investigador mundialmente reconhecido, evidenciou
invulgares capacidades de inova��o e elevado esp�rito cient�fico,
abordando dom�nios t�o importantes como fiabilidade estrutural, bet�o
armado e pr�-esfor�ado, engenharia s�smica, c�lculo autom�tico de
estruturas, modelos reduzidos, observa��o de estruturas e garantia e
gest�o da qualidade das obras.
Tendo nascido em Lisboa
em 1922, licenciou-se em Engenharia Civil no Instituto Superior T�cnico
(1ST) em 1945, sendo neste ano o aluno melhor classificado de todos os
cursos professados nesta escola. |
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J� em 1943, ainda aluno
do 1ST, integrou o primeiro grupo de colaboradores de Manuel Rocha no
Centro de Estudos de Engenharia Civil que veio a estar na base da
cria��o, em 1947, do Laborat�rio Nacional de Engenharia Civil (LNEC).
Nesta institui��o
desenvolveu toda a sua carreira e contribuiu de modo indiscut�vel para o
prest�gio que o LNEC alcan�ou nacional e internacionalmente como
institui��o de investiga��o de refer�ncia e grande escola da engenharia
nacional.
A tese que apresentou,
em 1954, ao concurso para investigador do LNEC, sob o tema
�Dimensionamento de Estruturas�, � um trabalho not�vel que veio a
constituir o quadro orientador de toda a actividade de investiga��o no
dom�nio das estruturas realizada no Laborat�rio, da qual foi n�o s� o
indiscut�vel maestro mas tamb�m o mais brilhante solista e, muitas
vezes, o primeiro a disponibilizar-se para a execu��o das mais humildes
e rotineiras tarefas.
Se � data da elabora��o
da sua tese n�o podia antever-se a grande revolu��o que os computadores
viriam a determinar na engenharia civil, muito oportunamente Ferry
Borges se apercebeu dessa realidade, abrindo uma nova �rea de
investiga��o no LNEC, criando aqui o primeiro centro de c�lculo
cient�fico do pa�s e promovendo, j� em 1962, um simp�sio
internacional sobre esta tem�tica. Os m�todos de an�lise estrutural que,
sob sua orienta��o, o Laborat�rio desenvolveu, impuseram-se mesmo aos
projectistas americanos da ponte suspensa sobre rio Tejo em Lisboa,
inaugurada em 1966, e inicialmente dedicada apenas a tr�fego rodovi�rio
mas j� prevista para a futura adapta��o ao tr�fego ferrovi�rio, o que
veio a efectivar-se em 1998. A solu��o inovadora de viga de rigidez
cont�nua, ainda hoje recorde mundial, adoptada nesta grande obra, fica
de certo modo ligada � sua interven��o, permitindo resolver os problemas
das grandes deforma��es que as elevadas sobrecargas dos comboios
induziriam na ponte.
A sua tese foi um
trabalho pioneiro em particular no que se relaciona com a utiliza��o em
engenharia civil de conceitos e t�cnicas de car�cter estat�stico, e
contribuiu decisivamente para a formula��o, hoje consagrada, da
seguran�a estrutural como uma nova disciplina da engenharia de
estruturas.
Foi este o dom�nio em
que mais continuadamente trabalhou e o que mais o tomou conhecido
internacionalmente.
A sua obra
Structural Safety, publicada em 1968, � uma refer�ncia fundamental
neste campo nuclear da engenharia estrutural, adoptada como livro de
texto em v�rias universidades estrangeiras, tendo ele pr�prio regido
cursos sobre este tema em Berkeley, Ispra e S. Paulo.
A actividade a que no
mesmo campo desenvolveu como relator do Comit� Conjunto de Seguran�a
Estrutural (JCSS - Joint Committee on Structural Safety) - associa��o
cientifica englobando as principais associa��es internacionais no
dom�nio das estruturas - desde a sua funda��o em 1972, e ao qual
presidia de 1985 a 1989 (e de que veio a ser posteriormente presidente
honor�rio), foi decisiva no estabelecimento de crit�rios harmonizados de
fiabilidade estrutural a de modela��o de ac��es, aplic�veis as
estruturas dos diferentes tipos de materiais. Tais crit�rios s�o agora
seguidos por toda a regulamenta��o mundial de estruturas e, mais
recentemente, pelos Eurocodigos Estruturais, promovidos pela Uni�o
Europeia, a que esteve directamente ligado na sua qualidade de membro da
Comiss�o da Ci�ncia e da Tecnologia na Europa (Codest), do Grupo
Coordenador dos Eurocodigos e do Comit� T�cnico TC1 � Resist�ncia
Mec�nica e Estabilidade das Constru��es.
O nosso pa�s seguiu bem
cedo a mesma orienta��o, o que n�o surpreende, uma vez que Ferry Borges
foi o principal dinamizador e respons�vel pela elabora��o da
regulamenta��o nacional de estruturas, tarefa de que se ocupou at� � sua
morte em 1993. Dessa ac��o resultaram os seguintes regulamentos:
Regulamento de Seguran�a das Constru��es contra os Sismos (1958);
Regulamento de Solicita��es em Edif�cios e Pontes (1961); Regulamento de
Estruturas de A�o para Edif�cios (1965 e 1986); Regulamento de
Estruturas de Bet�o Armado (1967); Regulamento de Seguran�a e Ac��es
para Estruturas de Edif�cios e Pontes (1983); Regulamento de Estruturas
de Bet�o Armado e Pr�-esfor�ado (1983). A partir dos finais da d�cada de
80, acompanhou a implementa��o em Portugal dos Eurocodigos Estruturais,
como primeiro presidente da Comiss�o T�cnica de Normaliza��o CT 115.
A abordagem cient�fica
da seguran�a estrutural, de que foi grande impulsionador, n�o o impediu
de que viesse a reconhecer que este problema n�o se esgota com o
estabelecimento de n�veis de fiabilidade dependentes das caracter�sticas
de aleatoridade das ac��es e das resist�ncias, devendo-se tamb�m ter em
considera��o os grandes erros humanos que t�m um papel relevante no
aumento de riscos e s�o respons�veis pela maioria dos colapsos de
estruturas. Consequentemente, veio a defender tamb�m a aplica��o de
metodologias do corpo de doutrina geralmente designado por "Garantia e
Gest�o da Qualidade"que se ocupa da aplica��o das t�cnicas de controle
de qualidade, de gest�o e dos v�rios ramos das ci�ncias humanas �
resolu��o dos problemas da constru��o, � semelhan�a do que foi
desenvolvido de maneira percursora pela industria aeron�utica e de
energia at�mica. Esta vis�o foi desenvolvida com o brilho habitual no
seu curso "Qualidade na Constru��o", publicado em 1988.
O mesmo tipo de
preocupa��es conduziu-o tamb�m a identificar a necessidade
de uma "cultura de seguran�a" e a dedicar-se,
nos �ltimos anos da sua
vida, � aplica��o das ci�ncias sociais ao sector da constru��o, propondo
que se considerasse a componente �tica da engenharia como novo dom�nio
de investiga��o. A sua publica��o Human Motivations. Ethics and
Justice traduz bem esta mensagem, que � ali�s retomada tamb�m no seu
�ltimo trabalho "Protec��o contra Cat�strofes Naturais", que concluiu na
v�spera da sua morte e que j� n�o p�de apresentar no simp�sio realizado
no LNEC sobre este tema, em Novembro de 1993.
Nestes textos assinala
que a r�pida evolu��o da t�cnica e o seu enorme impacte na vida das
sociedades modernas, particularmente no que se interliga com a protec��o
do meio ambiente, a conserva��o dos recursos naturais, a distribui��o
equitativa de custos, benef�cios e riscos e, em geral, a implementa��o
de progressos tecnol�gicos, imp�em a considera��o de aspectos �ticos
para al�m dos de natureza t�cnica, econ�mica e politica.
No dom�nio do
comportamento das estruturaras de bet�o armado e pr�-esfor�ado
desenvolveu tamb�m uma actividade not�vel.
Assim, realizou e
orientou estudos sobre fendilha��o, deforma��o, rotura e resposta n�o
linear destas estruturas, alcan�ando um prest�gio internacional que
justifica ter presidido, de 1977 a 1983, ao Comit� Euro-Internacional do
Bet�o (CEB), para o qual foi posteriormente eleito como presidente
honor�rio. Sob a sua presid�ncia, esta prestigiosa associa��o cient�fica
publicou o Model-Code de 1978, que constitui um marco da regulamenta��o
destas estruturas a n�vel mundial e onde se aborda, pela primeira vez, o
tratamento conjunto do bet�o armado e do bet�o pr�-esfor�ado,
consignando-se assim o conceito de "bet�o estrutural".
A iniciativa que
protagonizou de realizar no LNEC, em 1973, um curso internacional de
bet�o estrutural, no qual participaram como alunos algumas dezenas de
jovens investigadores e docentes universit�rios estrangeiros e tamb�m
portugueses, e, como professores, os mais destacados especialistas
internacionais, influenciou de modo muito marcante a ac��o do CEB e a
investiga��o neste dom�nio.
Um grupo desses alunos,
ocupando ent�o posi��es de refer�ncia na comunidade cient�fica
internacional, decidiu, em 1993, comemorar o 20.� Anivers�rio desse
curso, em homenagem a Ferry Borges, tendo promovido em associa��o com o
LNEC e o CEB a realiza��o, em Lisboa, de uma reuni�o t�cnica sob o tema
"Advanced Studies on Structural Concrete (workshop in tribute to Dr.
J�lio Ferry Borges)".
Esta foi a �ltima
homenagem que recebeu em vida.
Tamb�m na �rea da
engenharia s�smica, de t�o grande import�ncia para o nosso pa�s, deu
contribui��es not�veis para o progresso dos conhecimentos e formou
tamb�m uma verdadeira escola.
J� em 1955, no
bicenten�rio do sismo de 1755, participara activamente no simp�sio
organizado pela Ordem dos Engenheiros, abordando, pela primeira vez em
Portugal a considera��o da ac��o dos sismos no c�lculo das estruturas e
lan�ando as bases do regulamento que veio a ser publicado em 1958.
Continuou ao Longo da
sua vida a ser o grande dinamizador da investiga��o neste dom�nio
tratando, nomeadamente, a modela��o das ac��es s�smicas com base
probabil�stica e a resposta das estruturas sujeitas a estas ac��es, bem
como realizando estudos ligados ao projecto de grandes obras (pontes,
barragens) e a fiabilidade de equipamentos de centrais de energia
el�ctrica e outros.
O curso Earthquake
Engineering, que publicou em 1969, pode considerar-se mais um acto
marcante da engenharia s�smica como importante disciplina da engenharia
estrutural
O prest�gio do LNEC
nesta importante �rea foi particularmente afirmado com a inaugura��o, em
1996, de uma unidade de investiga��o dispondo de uma grande mesa
de ensaios s�smicos, com tr�s graus de liberdade, de concep��o original,
que obteve, em competi��o dif�cil, a n�vel europeu, com outras
candidaturas em diversas �reas cient�ficas, o financiamento da Uni�o
Europeia, vindo a ser a �nica unidade laboratorial portuguesa integrada
no conjunto das Grandes Instala��es Europeias de Investiga��o Cient�fica
da Uni�o Europeia. Justifica-se, naturalmente que a tal unidade tenha
sido atribu�do o nome de "Edif�cio Ferry Borges" (Fig. 1).
A actividade
internacional que neste mesmo dom�nio desenvolveu foi bem reconhecida
pela comunidade cient�fica internacional ao Longo da sua vida, em
particular pela Associa��o Internacional de Engenharia S�smica (IAEE) de
que foi director e vice-presidente, e da Associa��o Europeia de
Engenharia S�smica (IAEE) de que foi vice-presidente. Realizou v�rios
cursos sobre esta disciplina no estrangeiro, nomeadamente, no Instituto
Internacional de Engenharia S�smica de Bergamo (1967, 68, e 71) e no
Instituto Internacional de Sismologia e Engenharia S�smica de T�quio
(1971). J� ap�s a sua morte, no Congresso Mundial de Engenharia S�smica
realizado no M�xico, teve Lugar um simp�sio que lhe foi nominalmente
dedicado.
Muitas outras
homenagens assinalaram tamb�m os grandes m�ritos desta grande figura da
engenharia portuguesa, nomeadamente: Doutor Honoris Causa pela
Universidade T�cnica de Lisboa (1982), pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (1989) e pela Faculdade de Engenharia da Universidade do
Porto (1991); Ordem do Cruzeiro do Sul do Brasil; Ordem Nacional do
M�rito de Franca; Ordem de Santiago de Espada e 0rdem do Infante D.
Henrique (esta a t�tulo p�stumo) em Portugal (Fig. 2).
Figura 1 - Edif�cio Ferry Borges - LNEC |
Figura 2 -
0rdem do Infante D. Henrique |
Ao distingui-lo, em
1985, com o seu pr�mio de M�rito Internacional, a Associa��o
Internacional de Pontes e Estruturas (IABSE) caracterizou, no diploma
respectivo, de maneira bem expressiva a ac��o deste grande engenheiro
portugu�s: "en reconnaisance pour ses
contrbuitions scientifiques dans le domaine de la s�curite des
structures et de l'assurance de la qualit�, pour son encouragement au
developpement d'id�es novatrices, ainsi que pour son engagement
permanent en vue d'une meilleure co-operation inter-associations" .
Deve ainda destacar-se
a sua dedica��o ao servi�o p�blico e ao desenvolvimento da engenharia
portuguesa, ao longo de uma vida devotada ao LNEC do qual foi um dos
fundadores e onde desempenhou as fun��es de chefe da Divis�o de
Estruturas, chefe do Servi�o de Edif�cios e Pontes, chefe do
Departamento de Estruturas, subdirector, director e presidente do
Conselho Consultivo. Regeu v�rios cursos no LNEC e em universidades
portuguesas e estrangeiras; publicou mais de 170 trabalhos; proferiu
confer�ncias em mais de 20 pa�ses; orientou muitas teses a participou
como arguente em provas da carreira universit�ria e de investiga��o;
participou em mais de uma centena de reuni�es cient�ficas, muitas das
quais organizou e promoveu; fundou e dirigiu as principais associa��es
cient�ficas portuguesas no �mbito das estruturas.
Cientista fascinante,
criativo e inovador como poucos, J�lio Ferry Borges foi tamb�m um grande
homem, simples e modesto, exigente para consigo e para os seus
colaboradores, brilhante e surpreendente tanto nas grandes quest�es
cient�ficas como nas pequenas coisas do quotidiano.
Teve ainda tempo para
executar v�rios projectos de estruturas importantes constru�das em
Lisboa e de dirigir com seu pai uma pequena mas modelar empresa do ramo
metalomec�nico; era, ali�s, por esta �ltima actividade que durante
v�rios anos iniciava bem cedo os seus dias de trabalho.
Figura 3 -
JF. Borges acompanhando o Presidente da
Guin�, Lu�s Cabral, em visita ao LNEC, 1978. |
Cronologia
Biogr�fica
Nasce em
Lisboa. |
Conclui o curso de Engenharia
Civil do 1ST com a classifica��o mais alta dos cursos desse ano.
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Inicia a
sua colabora��o com o rec�m-criado LNEC; ap�s, desde 1943, trabalhar com
o Centro de Estudos de Engenharia Civil, que veio dar origem ao LNEC. |
Estagia no
Instituto de Cimento e Bet�o de Estocolmo, estudando o dom�nio das
estruturas e do bet�o armado. |
Obt�m o
grau de investigador do LNEC com a tese sobre "Dimensionamento de
Estruturas". |
1922 |
1945 |
1947 |
1948/49 |
1954 |
Chefia o
Servi�o de Edif�cios e Pontes do Laborat�rio. |
Realiza no LNEC um curso internacional
de bet�o estrutural, marcante para a ac��o do CEB e para a investiga��o
na �rea. |
E nomeado director do LNEC (1974).
Assume a presid�ncia do Comit� Euro-Internacional do Bet�o (CEB) at�
1983. |
Chega a presidente do
Conselho
Consultivo do LNEC. |
Assume a
presid�ncia do plen�rio do Comit� Conjunto de Seguran�a estrutural onde
entrou como relator em 1972. |
1962 |
1973 |
1977 |
1984 |
1985-1989 |
Eleito
presidente da Comiss�o Portuguesa CT115 � euroc�digos Estruturais |
Falece em
Setembro. |
�-lhe
atribu�da, a t�tulo p�stumo, a condecora��o de Grande Oficial da Ordem
do Infante D. Henrique. No mesmo ano, o CEB cria o Pr�mio Ferry Borges. |
1991 |
1993 |
1995 |
*V�tor Monteiro �
investigador-coordenador aposentado do LNEC
in
Engenharia e Vida n�3 - Junho de 2004 |