Habitar com qualidade e urbanidade
António Baptista Coelho
Habitar é marcar um território e os seus edifícios e também ser marcado por eles, salientando-se que “a casa continua a ser a unidade essencial do ambiente humano construído” ( Richard Weston, “A casa no século vinte” ). Habitar com qualidade constitui uma possibilidade que marca o habitante desde o processo que segue na procura e escolha da sua casa e dos espaços que a envolvem e a constituem, até à vivência que aí pode ter.
O que se tem de visar é a constituição de arquitecturas habitacionais simultaneamente bem qualificadas na sua arquitectura e bem vivas e amadas pelos seus habitantes, pois como diz Oscar Niemeyer: “não é a arquitectura que vai mudar a vida, a vida é que pode mudar a arquitectura” (das “Conversas de Amigos” entre Niemeyer e José Carlos Süssekind) . Tudo se liga à necessidade de não repetir mais, os mesmos erros, já os repetimos vezes sem conta. E para isso é essencial estabelecer consensos básicos e redefinir um conceito de arquitectura claramente aberto e sensível à vida e ao mundo.
“Há certas qualidades que podem ser consideradas essenciais em todos os géneros de casas: sossego, encantamento, simplicidade, largueza de vistas, vivacidade e sobriedade, sentido de protecção e abrigo, expressiva economia na manutenção, harmonia com a envolvente natural e a vizinhança, ausência de lugares escuros e ao abandono, conforto e uniformidade de temperatura, e a possibilidade de cada casa poder ser o adequado quadro doméstico dos seus habitantes. Ricos e pobres, uns e outros, apreciarão estas qualidades”( Voysey C. F. A “The English Home” 1911 ).
Os estudos sobre dimensões e outros aspectos mais objectivos estão hoje em boa parte estabilizados, designadamente no Laboratório Nacional de Engenharia Civil, ainda que precisem de maior divulgação, enquanto já muitos entendem que a resolução de grandes problemas que se mantêm, por exemplo o contínuo e crítico abandono do uso do espaço público, e a habitação para grupos específicos, passa também por outros caminhos qualitativos menos mensuráveis, mas igualmente vitais.
Temos por um lado um mundo doméstico que parece absorver inovações com alguma flexibilidade, se houver adaptabilidade nos espaços projectados, enquanto que há que investir um enorme cuidado nas circulações comuns, nos tipos de edifícios, nas formas e funções de espaços públicos, e elementos de equipamento e enquadramento, considerando ainda que, tal como defende Charles Moore “temos que desenvolver a energia e o conhecimento necessários para aplicar em grandes conjuntos urbanos a qualidade que conseguimos assegurar isoladamente, ou em pequenos grupos”. E, quem sabe, deixar mesmo de fazer grandes conjuntos, optando essencialmente pelo preenchimento e vitalização do espaço urbano e peri-urbano.
Essa energia e esse conhecimento referem-se à essencial qualificação arquitectónica, pois é chegada a hora “de reconhecer o interesse público da arquitectura , enquanto organiza, qualifica e humaniza o espaço; de disciplinar a ocupação do território ; e de exigir produções de qualidade através da atribuição das respectivas responsabilidades” ( Nuno Teotónio Pereira , Tempos, Lugares, Pessoas, Col. Os Contemporâneos do Público, Contemporânea Jornal “Público”, Matosinhos, 1996 ). E em toda esta problemática é fundamental perceber que “a boa arquitectura dignifica quem a concebe e promove, dignifica o lugar onde se implanta, e dignifica os seus moradores” (Duarte Nuno Simões, Intervenção na entrega dos Prémios INH 2000).
A qualidade estética dos edifícios e das vizinhanças associada à capacidade dos locais para gerar convivialidade, é o factor urbanístico que produz o “cimento” unificador da cidade (Michel de Sablet, Des Espaces Urbains Agréables à Vivre – Places, Rues, Squares et Jardins, Editions du Moniteur, Paris, 1991) . São palavras sábias de Sablet, que afirma ser a qualidade do projecto um elemento estratégico fundamental na guerra que se tem de travar contra a insidiosa desagregação das cidades modernas. Uma cidade que se deseja “reconstituída nos seus sistemas de convivência”, como defende Jordi Sebastià. E reconstituir uma cidade convivial, portanto bem viva e habitada, passa pela criação de paisagens urbanas motivadoras - unificadas e variadas -, pois “o habitante necessita de emoção na percepção e na relação afectiva com o espaço urbano” (Francisco de Gracia, Construir en lo Construido, Editorial Nerea, Madrid, 1992) .
Muito se jogará, assim, na identidade de cada bairro ou conjunto urbano significativo e no desenvolvimento do protagonismo de espaços de uso colectivo e de uso público, que sejam socializadores e geradores de coesão, quando intensamente habitados. Articulando-se, integrando-se e interpenetrando-se, espaço edificado e espaço livre, em trechos de vida urbana vivos e humanizados, que constituem, afinal, o tal cimento unificador da cidade composta por espaços bem habitados.
Se há algum mistério na acção de fazer cidade, ele passa por habitar/marcar bem esses trechos colectivos de vida humana e urbana, “ organizando, qualificando e humanizando o espaço, disciplinando a ocupação do território” e “exigindo produções de qualidade, que dignifiquem quem a concebe e promove, que dignifiquem os lugares onde se implantam, e que dignifiquem os seus moradores” (voltando a citar Nuno Teotónio Pereira e Duarte Nuno Simões) .
E se há algum mistério na acção de fazer cidade, ele passa, naturalmente, pela necessidade de essa arquitectura residencial urbana bem qualificada, ser dinamizadora do uso de espaços exteriores sem zonas residuais e geradores de vizinhanças de proximidade caracterizadas por afirmadas condições de caracterização residencial, convívio e lazer naturais, segurança e durabilidade.
Vizinhanças essas claramente identificáveis, sendo geradoras de boa orientação urbana, por um lado, e que, por outro, garantam agradáveis transições entre os vastos espaços públicos urbanos e os espaços domésticos e individuais, capazes, por seu lado, de produzirem ambientes íntimos e apropriáveis, essencialmente interiores, mas que devem poder transparecer estrategicamente sobre esses espaços exteriores caracterizadamente colectivos, ligados a uma específica vizinhança, constituída por um dado conjunto de habitações, mas usáveis em plenitude por qualquer outro cidadão.
É aí nesse lugar de limites, de transições, de passagens, de protagonismo directo de outros lugares de transição e de transparência, que são as fachadas marcadas pelos vãos de janela e de varanda – “parfois coupure et parfois couture” (“ por vezes ligação e por vezes corte”, nas palavras de Jean-Charles Depaule) – que um outro importante actor urbano tem o seu palco de eleição.
Falo das tipologias edificadas e das suas variáveis ligações a esse exterior colectivo e público, ligações essas que são também reflexo da apreciável diversidade de equilíbrios sociais e espaciais que aí são possíveis e dos variados diálogos formais e ambientais entre todo esse conteúdo do edifício habitacional e as imagens públicas; imagens estas que devem suscitar um máximo de apropriação sem perder um máximo de dignidade. E no limite podemos até lembrar as primeiras cidades, aquelas em que quase não havia ruas, apenas amálgamas de casas; afinal as ruas surgiram das casas.
Estas reflexões “levam a afirmar que já não se faz arquitectura no interior das habitações, e que a arquitectura, no contexto actual, só tem possibilidade de se expressar na agregação ou no exterior do edifício (...), centrando-se a discussão em algumas questões, como a localização e as características dos novos tecidos urbanos, as formas e os instrumentos do ordenamento, o modo de agregação das células para formar os edifícios, a reflexão sobre os programas funcionais da habitação e a respectiva tradução tipológica e, por último, as influências, para as formas construídas, da investigação de novos materiais e técnicas e, especialmente, dos diferentes modos de pensar os sistemas tradicionais” (Francesc Peremiguel, “Mètodes, instruments i tècniques pel projecte residencial”, Papers Sert n.2, Barcelona 2000).
Fazer cidade viva e habitada ao longo de espaços públicos animados, exige uma arquitectura urbana e residencial muito bem qualificada, logo desde a fase de projecto, e que não se pode limitar ao espaço que fica da soleira da porta de entrada para dentro. Como indica Chombart de Lauwe, “escadas, patins, galerias, passeios, lojas e cafés fazem parte do espaço familiar". Numa casa pequena, por exemplo, a existência próxima de bons espaços exteriores de estar, de um seguro parque infantil, e de um agradável "café de esquina", melhoram muito a vivência interior, dando mais espaço, sossego e à-vontade, tanto aos adultos como aos mais jovens, participando na formação das crianças, no bem-estar dos idosos, e na satisfação residencial global e no orgulho cidadão de todos nós habitantes.
Mas para que no exterior se possa habitar é preciso, para além de equipamentos e de relações de acessibilidade, desenvolver uma vizinhança social agradável, um ambiente atraente e espaços e elementos de equipamento variados e funcionais. Ruas, pequenos jardins e outros espaços livres, constituem a parte pública de uma unidade residencial que estimula a apropriação e o convívio. A outra parte, os edifícios residenciais, deve oferecer soluções atraentes, urbanas e harmonizadoras das relações interpessoais, em espaços comuns qualificados e bem apropriáveis, marcados por uma escala humana que combata a concentração, o anonimato e uma imagem urbana monótona ou triste.
Quero agora concluir esta reflexão com uma citação que julgo ser uma extraordinária definição de arquitectura habitacional, e uma excelente definição porque realmente não limita .
“A soma dos hábitos constitui a habitação. E a habitação é a função que propicia e decanta a Arquitectura. Como a visão na Pintura, a audição na Música, a leitura na Poesia ou o movimento na Dança, a habitação afina-se, magnifica-se e resplandece com a Arquitectura. Que é o esplendor da habitação. Diferente de outros hábitos, como os de ver ou ouvir, complexos mas concentrados num só dos sentidos, o hábito de habitar liga-se a todos eles. Na pluralidade das sensações, a Arquitectura assemelha-se ao Teatro. A habitação é assim o propósito principal da Arquitectura: a sua tese.” (Joaquín Arnau)
O Grupo Habitar - Associação Portuguesa Para a Promoção da Qualidade Habitacional vai abordar, entre outros aspectos da realidade do habitar, esta apaixonante temática da relação entre a qualidade do habitar e a urbanidade , extremamente oportuna num País com tão grandes valores paisagísticos e urbanos e tão carente de requalificação desses mesmos valores, enquanto tem ainda outras críticas carências em termos de qualidade dos sítios de habitar e de adequação aos modos de habitar. Assim talvez de fraquezas e deficiências se possam fazer forças para acções concertadas nas múltiplas frentes da qualidade habitacional:
Estudar e discutir o nosso habitar numa visão ampla, multidisciplinar e integrada, numa perspectiva teórico-prática que considere uma visão de futuro fundamentada pelo que já foi estudado e realizado.
Tratar o habitar da célula/fogo aos bairros na cidade, dos aspectos da continuidade urbana à integração paisagística e ambiental, da qualidade de desenho de arquitectura à qualidade construtiva, da durabilidade e equilíbrio de custos à satisfação dos moradores e à preparação dos aspectos de gestão.
Promover o progresso e a difusão dos conhecimentos teórico-práticos sobre o habitar, através da observação, do estudo e da discussão das realidades e da problemática habitacional num sentido lato bem fundamentado, participar no aprofundamento de uma política habitacional adequada, e colaborar com organismos e associações congéneres.
Na altura em que estiver a ler este texto o Grupo Habitar – Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional , cujos objectivos se dirigem para a observação, a análise, a discussão e a divulgação das matérias do habitar, terá já realizado a sua primeira Assembleia Geral Eleitoral, marcada para 3 de Dezembro de 2003, em Lisboa, na Sala 2 do Centro de Congressos do Laboratório Nacional de Engenharia Civil.
Como Presidente da Comissão Instaladora quero, desde já, também em nome de todos os companheiros que partilharam até agora esta excelente jornada, agradecer à Federação Nacional de Cooperativas de Habitação Económica, ao Instituto Nacional de Habitação e ao Laboratório Nacional de Engenharia Civil todo o apoio dado no lançamento da Associação, e desejar que o GH – APPQH tenha uma longa e útil vida ao serviço de um melhor habitar em Portugal.
Artigo de António Baptista Coelho, para a Revista Habitar Hoje, Novembro de 2003 |